As gatinhas dividem o mar com os lobos

 

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Por Ricardo Pedebos

O mar sempre foi um espaço mitológico. A coisa vem de muito tempo. A navegação de Ulisses, ou Odisseu em grego, que significa o homem que passou pela dor, a viagem arquetípica do herói que até hoje nos inspira a imaginação e tem produzido boa literatura. Mais adiante a era das grandes navegações com seus ilustres comandantes e marinheiros. No final do Século 19 a vela de recreação era uma realidade e por estes tempos começam as façanhas dos navegadores solitários que deram uma nova trajetória na vela.

 

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A imagem dos navegadores que povoaram nossas mentes todos esses anos, formada pelos seus rostos sofridos, os seus gestos altivos e nobres carregados de significados criaram a imagética dos “homens do mar”. O herói que se lançou num mundo desconhecido - para quem nunca cruzou pelo oceano – deparando-se com dificuldades e suplantando-as.

Lobo do Mar - Pois agora o que se vê no mundo da vela é um antítipo de tudo isso. A figura do Lobo do Mar, como imagem do lado selvagem da vida mudou. Quem poderia imaginar anos atrás o navegador sendo uma menininha, com rosto meigo fazendo uma circunavegação solitária num veleiro de casco cor de rosa, de nome Ella's Pink Lady, patrocinada por uma empresa de cosméticos francesa. Ler no seu blog, com desenhos e florzinhas, sobre o seu dia-a-dia no mar, os imprevistos, as agruras dos ventos fortes, ondas de quase 12 metros na África do Sul, as passagens pelos cabos Horn e Boa Esperança, e problemas no motor, misturados com alguns comentários tipo: “não era uma mariposa era uma barata.” Todas suas histórias genuínas e sinceras, mas ao mesmo tempo diferentes da forma tradicional.

Antes eram os diários de bordo transformados em livros que contavam a verdade dos seus sentimentos, os fatos mostrados em seus pormenores, os roteiros e manobras, ou ainda episódios que necessitavam de retrospectivas, neste vai e vem na busca para entendê-los melhor. Uma realidade sempre associada ao caráter do “herói navegador”. A jornada do herói era completada quando do seu retorno para narrar sua viagem por lugares desconhecidos (o mar). Agora tudo é on line e imediato, acompanhados por milhares de seguidores ao mesmo tempo e em todo mundo. “A máscara escura do vento e do mar”, na expressão de Giliarde, nos Trabalhadores do Mar, de Vitor Hugo, cedeu lugar a luminosidade da exposição total.

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A navegação juvenil – De uns anos para cá se intensificou a busca do mais jovem a fazer uma circunavegação solitária. E quem está liderando o ranking não são os meninos, mas as meninas. A mais recente foi a australiana Jessica Watson de apenas 16 anos completou a sua volta ao mundo sem paradas, encerrada no dia 16 de maio, após 210 dias no mar num veleiro de 34 pés. Apesar estar envolvida em polêmica para ser reconhecida pela entidade que regulamenta os recordes a vela, a World Sailing Speed Record Council, ela se tornou a pessoa mais jovem a completar a aventura.

Jessica também esteve ameaçada de perder o título porque durante sua viagem já havia outra menina, a norte-americana Abby Sunderland, seis meses mais jovem, tentando a mesma façanha. Abby partiu, em janeiro, da Califórnia em seu veleiro "Wild eye", de 12 m, para dar a volta ao mundo. Ela passou por uma tempestade no sul do Oceano Índico no início de junho e a família perdeu contato com ela. No dia 10, a jovem ativou as balizas de socorro depois de ter perdido o mastro da embarcação, durante a tormenta, quando estava em frente à ilha Saint Paul, no sul do Oceano Índico, a 3,3 mil km da ilha de Reunião.

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O Centro regional de Socorro e Salvamento de Reunião (CROSS) enviou três navios ao setor e alertou as autoridades australianas. No dia seguinte, Abby foi localizada por um avião australiano e recolhida pelo pesqueiro "Ile de la Reunion" num mar muito agitado.
Em 2009, o seu irmão mais velho, Zac Sunderland, de 17 anos, havia conquistado o recorde de volta ao mundo em solitário, que por sua vez em novembro do mesmo ano foi batido por outro norte-americano Mike Perham, três meses mais jovem.

Mas no curso da velocidade das coisas, o título de Jéssica pode durar pouco tempo. Um tribunal holandês de Middelburg aprovou no dia 27 de julho, o pedido da adolescente Laura Dekker, 14 anos, para velejar sozinha. Desde que tinha 13 anos, Laura tentava obter a permissão para tentar se tornar a pessoa mais jovem a dar a volta ao mundo em um barco. As informações são da agência AP.

"Com esta decisão, a responsabilidade de Laura fica com os pais", disse o juiz S. Kuypers. "Cabe a eles decidir se Laura pode zarpar em sua viagem de barco", afirmou o magistrado. Os pais de Laura, que são separados, dizem apoiar o plano da filha.


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O caso de Laura Dekker provocou polêmica quando, aos 13 anos, a adolescente tentou a permissão judicial para viajar sem os responsáveis. Na época, a Vara de Família de Middelburg impôs uma ordem de tutela impedindo que a jovem viajasse. A ideia de Laura provocou um debate no país sobre o quanto os pais devem apoiar ou incentivar os sonhos de seus filhos.

A jovem não foi ao tribunal, mas seu advogado, Peter de Lange, disse que ela ficaria encantada com a decisão. "Ela vai ficar incrivelmente feliz com isso", disse Lange. "A justiça foi feita", afirmou o advogado, que também disse que Laura pode ir para seu ponto de partida na viagem, em Portugal, dentro de duas semanas.

O chamado pós-moderno muda tudo em todas as coisas, a imagem mitológica do Poseidon, o deus grego do mar, que também representava o poder da masculinidade, ao que parece não é mais a mesma. Os lobos do mar deram lugar às gatinhas que navegam pelos mesmos oceanos. Talvez a motivação de hoje seja outra. Simples busca da fama e do dinheiro na nossa sociedade do espetáculo, talvez. Mas, seja lá como for, sem dúvida o mar continuará a ser essa fonte inesgotável de mitos. Como bem ressaltou Marshall Berman  a “modernidade desmancha tudo no ar”.